E acho que eu sempre fui sua. Eu já era sua antes mesmo de
saber que um dia não ia dar certo. Mas a gente combinou que não era amor.
Você abriu meu suco de manga predileto e guardou coisas minhas na sua casa, quando a gente só era amigos. E
fuçou todas as minhas gavetas enquanto eu tomava banho. E cheirou meu
travesseiro pra saber se ainda tinha seu cheiro, ou talvez o cheiro de outra pessoa que não fosse você. Ou pra tentar lembrar meu
cheiro e ver se ele ainda te deixa sem vontade de ir embora. Mas ainda assim,
não somos íntimos. Nada disso. Só estamos aqui, reunidos nesse momento, porque
temos duas coisas muito simples em comum: nada melhor pra fazer. Só isso. É o
que está no contrato. E eu assino embaixo. Eu falei pra você, sem romance, sem aquele lance de amor, foi melhor assim. Muito melhor assim.
Tô super bem com tudo isso. Nossa nunca estive melhor. Mas não faz isso. Não me
olha assim e diz que vai refazer o contrato. Não diz que sentiu minha falta, e que precisa de mim. Não faz o mundo inteiro brilhar
mais porque você é bobo. Não faz o meu dia parecer que ta lindo, só porque você escreveu nossos nomes no box do banheiro. Não faz o mundo inteiro ficar pequeno só porque o seu
chapéu é muito legal. Não deixa eu assim, deslizando pelas paredes do chuveiro
de tanto rir porque seu cabelo fica ridículo molhado. Não faz a piada do
vampiro só porque você achou que eu estava em dias estranhos. Não transforma
assim o mundo em um lugar mais fácil e melhor de se viver. Não faz eu ser assim
tão absurdamente feliz só porque eu tenho certeza absoluta que nenhum segundo
ao seu lado é por acaso. Combinamos que não era amor e realmente não é. Mas
esse algo que é, é realmente muito libertador. Porque quando você está aqui, ou
até mesmo na sua ausência, o resto todo vira uma grande comédia. (…) Adoro como
o mundo fica coitado, fica quase, fica de mentira, quando não é você. Porque
esses coitados todos só serviram pra me lembrar o quão sagrado é não querer
tomar banho depois. O quão sagrado é ser absurdamente feliz mesmo sabendo a dor
que vem depois. O quão sagrado é ver pureza em tudo o que você faz, ainda que
você faça tudo sendo um grande safado. O quão sagrado é abrir mão de evoluir só
porque andar pra trás é poder cruzar com você de novo. Não é amor não. É mais
que isso, é mais que amor. Porque pra te amar mais, eu tenho que te amar menos.
Porque pra morrer de amor por você, eu tive que não morrer. Porque pra ter você
por perto um pouco, eu tive que não querer mais ter você por perto pra sempre.
E eu soquei meu coração até ele diminuir. Só pra você nunca se assustar com o
tamanho. E eu tive que me fantasiar de puta, só pra ter você aqui dentro sem
medo. Medo de destruir mais uma vez esse amor tão santo, tão virgem. E eu vou
continuar me fantasiando de não amor, só pra você poder me vestir e sair por aí
com sua casca de não amor. E eu vou rir quando você me contar das suas meninas,
e eu vou continuar dizendo “bonito carro, boa balada, boa idéia, bonita cor,
bonito sapato”. E eu vou continuar sendo só daqui pra fora. Porque no nosso
contrato, tomamos cuidado em escrever com letras maiúsculas: não existe ninguém
aqui dentro. Mas quando, de vez em quando, o seu ninguém colocar ali, meio sem
querer, a mão no meu joelho, só para me enganar que você é meu dono. Só para
enganar o cara da mesa ao lado que você é meu dono. Eu vou deixar. Vai que um
dia você acredita. -Tati Bernardi
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